Artigo de: Alexandre Paredes
Como o próprio nome indica, preconceito quer dizer um conceito
previamente formado, ou seja, pré-estabelecido mesmo antes de se conhecer
aquilo que se apresente para nós ou o que acreditamos conceituar ou conceber.
Geralmente, está associado a uma percepção negativa prévia sobre algo ou alguém,
que faz com que a pessoa o rejeite antes que possa conhecê-lo de forma mais
aprofundada.
O preconceito pode ser sobre qualquer coisa: um estilo musical; a
aparência exterior de uma pessoa ou de um objeto, que nos leva a julgá-lo mesmo
sem conhecê-lo; um produto à venda por determinada marca, que é avaliado, por
exemplo, segundo algo que ouvimos falar; pode ser sobre uma determinada
cultura, religião ou povo; uma ideologia política; um alimento, que, pela sua
aparência ou cheiro, julgamos previamente seu sabor; além das clássicas e mais
danosas formas de preconceito, baseadas na cor da pele de uma pessoa, na sua
orientação sexual ou seu gênero.
Ninguém está a salvo de ser preconceituoso, porque, de modo geral, todos
temos crenças, visões de mundo, experiências ou percepções cristalizadas. E
quanto mais avançamos na idade, mais difícil se torna reformular conceitos e
demolir preconceitos cristalizados, que são como verdades dentro de nós que não
ousamos contestar, questionar, porque são, de algum modo, convenientes ou
cômodas.
Ideias preconcebidas ou preconceituosas não costumam ter uma base
racional, simplesmente porque, para se formar um conceito ou estabelecer
qualquer julgamento sobre algo ou alguém, são necessários, primeiramente, o
conhecimento, a observação e a formulação de argumentos que darão sustentação àquelas
ideias.
Se tivéssemos o hábito de questionar a nós mesmos, diariamente, sobre o porquê
de acreditarmos no que acreditamos, quais os fundamentos racionais que
sustentam nossas verdades, nossas crenças, iríamos nos surpreender.
Porém, o que ocorre é que a nossa mente prega peças. Não raro,
elaboramos sofisticados sistemas de crenças, aparentemente racionais, para
justificar nossas paixões, vícios, condutas não muito corretas ou coerentes, e
torná-las moralmente aceitáveis aos nossos próprios olhos e aos olhos da
sociedade, fazendo com que nos sintamos mais confortáveis em permanecer
alimentando as paixões ou vícios aos quais nos entregamos.
Assim, os nossos sistemas de crenças, que parecem tão lógicos e
racionais, geralmente são subvertidos pelas nossas paixões, nossos fracassos,
traumas, medos, experiências psicológicas não bem digeridas e coisas que nos
ensinaram quando éramos crianças. É como um iceberg: nossos sistemas racionais
estão, na verdade, apoiados em uma montanha que fica submersa, e que é bem
maior que a parte emersa. Essa parte de nós escondida, em grande medida influencia
ou comanda nossos raciocínios.
O preconceito, então, tem origem muito mais em aspectos psicológicos e
emocionais do que em bases racionais. Por isso que é tão difícil mudar sistemas
de crenças e preconceitos, porque eles estão apoiados em questões subjetivas do
ser humano. Podemos citar o exemplo do preconceito de raça. Não há uma base
lógica para sustentar que uma determinada raça seja superior a outra.
Em primeiro lugar, porque do ponto de vista genético, não existem
propriamente “raças”. Uma pessoa de aparência caucasiana, seja ela de qualquer
lugar do mundo, terá genes de diversas etnias. Pessoas de diversos locais do
planeta, quando submetidas a um mapeamento genético, descobrem,
invariavelmente, que são o resultado do cruzamento de diversas “raças”, ou
seja, possuem ancestrais de diversas etnias, mesmo aqueles que se consideram
raças “puras”.
Desse modo, aquilo que consideramos “raças” são apenas aparências
exteriores, que geralmente não condizem com a realidade genética de cada ser
humano. Uma pessoa nascida na Europa, por exemplo, será invariavelmente
descendente de várias etnias que se entrecruzaram durante séculos no
continente, como os Mouros, os Visigodos, os Ostrogodos, Anglos, Saxões, Celtas,
Gauleses, Vândalos e daí por diante.
Em segundo lugar, porque os argumentos utilizados para validar a tese de
que determinadas raças ou determinados povos seriam superiores a outros parece
desprezar o aspecto histórico e cultural. Os povos europeus, de modo geral,
alimentaram, durante muito tempo, a ideia de superioridade em relação a outros
povos, mas essa pretensa superioridade somente se deu pela ação da força
militar, da violência, da subjugação. Os povos vencidos nas guerras eram
escravizados e, naturalmente, não puderam se desenvolver tanto quanto os povos
vencedores.
Os romanos venceram os gregos no século III antes de Cristo, de modo que
se tornaram escravos na sociedade romana, mas isto não significa que os gregos eram
ou sejam inferiores. Basta lembrarmos das conquistas de Alexandre, o Grande, da
Macedônia, que expandiu a cultura grega por grande parte da Europa, Ásia Menor
e África. Por razões históricas, em um dado momento, os gregos foram sobrepujados
pelos romanos, pela força, mas sua cultura permaneceu influenciando o mundo
romano, assim como nos influencia até hoje. O mesmo se deu com o povo hebreu,
que foi subjugado pelos romanos, e até hoje estudamos a Bíblia, que é um dos
seus legados.
Roma poderia ter diversas virtudes, como o impulso civilizatório, os
avanços na engenharia e as ideias de justiça, porém trazia também
características execráveis, como a violência e a escravização de seres humanos,
que foi uma das mais perversas da história da humanidade.
Então, se os povos indígenas e africanos foram sobrepujados pela força,
isto não indica inferioridade desses povos em relação aos europeus. O que
ocorreu foi a dominação de um povo sobre outro por meio da violência, seja ela
explícita, como a imposição pelas armas, seja ela um pouco mais velada, que é a
imposição cultural. E a violência, por mais que seja generalizada no mundo,
deve ser vista como uma característica negativa de um povo, e não como uma boa qualidade.
Ocorre que a história que estudamos foi contada pelos vencedores, ou seja, pelos
mais violentos ou aqueles que conseguiram superioridade tecnológica-militar
para vencer e escravizar outros povos.
Mas tanto a cultura indígena quanto a africana influenciam-nos até hoje.
Sem a contribuição indígena, não conheceríamos, por exemplo, as riquezas da
nossa flora para uso medicinal ou para alimentação. O hábito de tomar banho
diariamente é também um legado dos povos indígenas brasileiros. Ainda hoje,
temos muito a aprender com os indígenas sobre sua relação com a natureza, uma
vez que nossa cultura ocidental tem ocasionado a destruição do planeta.
Sem a contribuição africana, provavelmente não teria nascido o Rock, certamente
o Pop não teria surgido como o conhecemos, não teríamos conhecido o Hip Hop, o
Street Dance nem o Break Dance. Sem o legado dos afro-americanos no Brasil,
certamente não teríamos conhecido o Samba e nossa cultura seria infinitamente
mais pobre e menos alegre; teríamos, também, muito menos riqueza na área da
espiritualidade.
Diante dessas questões, por que, então, existe o racismo? Basicamente, o
racismo é ensinado, passado de pai para filho por meio da educação, ou
deseducação neste caso. Mas ele nasce, e se fixa, principalmente da necessidade
do ser humano de se sentir superior a outro ser humano, ou seja, nasce da
exaltação do ego, do orgulho em suma.
Para se sentir melhor que as demais pessoas, criam-se ideias de que
minha cidade é melhor do que a sua, meu país é melhor do que o do outro, a raça
ou cor de pele a que pertenço é melhor do que a do outro, assim como o time de
futebol que elegi para torcer é melhor do que o seu.
Trata-se do mesmo mecanismo que nos faz pensar que eu sou melhor que
alguém porque tenho um carro sofisticado ou porque uso uma roupa de marca, ou
porque tenho uma bela casa, que sou melhor do que os outros porque pertenço a
uma classe social superior. Se participo de classe social inferior, eu ressalto
que não sou como essas pessoas de nariz empinado, ou seja, que supero esses que
se sentem superiores a mim devido à minha “humildade”. Na verdade, esse tipo de
humildade é só mais uma forma de orgulho camuflado.
Não há nada de prévio que possa determinar que uma pessoa seja melhor do
que a outra. Sua cor de pele, seu status, a roupa que veste, seu sotaque, sua
religião, sua ideologia política, seu grau de escolaridade, seu país, sua
cidade de nascimento, seu vocabulário, nada disso torna uma pessoa, a priori,
melhor do que ninguém. São as nossas atitudes que nos definem,
independentemente da embalagem por meio da qual nós nos apresentemos.
O
preconceito de raça nasce, também, da falsa percepção de que o outro pode ser
uma ameaça para mim. Se é diferente de mim, se vem de fora, é alguém que não
faz parte da “minha” comunidade. Esse tipo de preconceito é facilmente
ilustrado pela xenofobia, a aversão ao estrangeiro, que é visto como alguém ou
um grupo que pode tirar nossos empregos, subverter nossos valores, tornar nossa
sociedade pior ou deturpar nossa identidade.
Quando ocorrem ataques terroristas, por exemplo,
essa xenofobia se torna mais clara e evidente. Se nosso país é atacado por
pessoas que se dizem islâmicas, passamos a alimentar o preconceito contra
pessoas que usam burca ou leem o Alcorão, ainda que essas pessoas nada tenham a
ver com o terrorismo e ainda que a religião islâmica não endosse atitudes
violentas.
Às vezes, esse sentimento de ameaça vem de dentro. Nos
Estados Unidos, após a Guerra da Secessão e abolição da escravidão, algumas
comunidades de afro-americanos daquele país começaram a prosperar, a ter algum
poder aquisitivo e se tornaram uma população numerosa. Essa população começou a
reivindicar os mesmos direitos dos demais cidadãos. Assim, aquela parcela da
população que ainda alimentava ideias escravocratas, sentindo-se ameaçada,
patrocinou chacinas a afrodescendentes e criou leis discriminatórias e de
segregação racial, que somente ao custo de muitas lutas, perseguições e vidas
perdidas, foram sendo derrubadas ao longo de várias décadas.
No Brasil, não houve uma guerra da secessão, não
houve, exatamente, uma segregação de maneira formal, mas eles foram segregados de
forma cultural. A discriminação e o preconceito foram naturalizados. Os
próprios brasileiros acreditavam que não havia preconceito racial no Brasil,
afinal não se jogam cascas de bananas nos estádios e Pelé foi e ainda é o maior
ídolo do país.
Sempre se acreditou na fantasia de que os negros e
os mestiços sempre foram bem tratados no Brasil, assim como na fantasia de que,
na época da escravidão, os escravos viviam bem, servindo aos seus senhores, que
eram humanos e gentis. Essa realidade mudou quando pessoas com cor de pele
escura passaram a conseguir, com muito custo e muita luta, ascender
socialmente.
Enquanto o negro permanecer na senzala ou,
traduzindo para os dias atuais, nos empregos de menor expressão social ou de
subserviência, os preconceituosos não se sentem ameaçados e permanecem
silenciosos, dando a sensação de que eles nunca existiram por estas bandas. Entretanto,
basta que os afrodescendentes conquistem postos na sociedade e empoderem-se,
para que os racistas se sintam ameaçados, saiam de sua situação de conforto, e
apareçam para atacar e mostrar suas garras.
Pessoas racistas têm problemas com sua própria autoestima. Podem até
parecer que são bem resolvidas consigo mesmas, com sua aparência, com sua vida,
com seu emprego, mas têm necessidade de ficarem se autoafirmando, precisam
dizer ou mostrar para o mundo que têm bens, que são bem-sucedidas, que são
superiores, que são melhores do que outros, que têm um belo corpo ou que são
muito inteligentes. Quando não têm nada disso, maior é o motivo de se autoafirmarem
por meio da falsa ideia de que sua cor de pele é superior à cor da pele do
outro. É um mecanismo de compensação. Sempre que precisamos mostrar, de forma
exagerada, algo para o mundo, repetir, é porque não nos sentimos seguros se
somos tão bons mesmo quanto a propaganda que fazemos de nós mesmos.
Isto explica a atitude de uma pessoa que humilha outra em público por
conta de sua cor de pele. É uma necessidade de autoafirmação. No fundo, ela
precisa humilhar a outra pessoa, ressaltando aquilo que ela crê ser um motivo
de inferioridade – no caso, a cor da pele – porque tem necessidade de se sentir
superior, e só tem necessidade de se sentir superior quem se sente
inferiorizado por algum motivo, ou quem tem dúvidas quanto às próprias
virtudes, qualidades, quanto à própria capacidade de ser atraente,
interessante, somente por conta de suas características morais ou físicas.
Às vezes, ocorre também
quando a pessoa tem uma bela aparência ou status, e até sabe disso, e fixa-se
de forma obsessiva nessas questões exteriores porque se sente insegura quanto
às próprias qualidades morais ou intelectuais. Então ataca aqueles que, segundo
crê, sejam menos belos ou sejam de classe social inferior, por meio do
desprezo, da ironia, do deboche, que nada mais são do que declarações, em alto
e bom som, de que tal pessoa só tem isso a que se agarrar, porque crê que lhes
faltam as qualidades interiores.
Ocorre que o preconceituoso geralmente não se percebe como tal. Ele
acredita que suas ideias preconcebidas são uma verdade. Como a verdade do
preconceituoso não tem base racional, ela se parece com um dogma religioso, que
é uma verdade imposta por uma autoridade, verdade à qual a pessoa se entrega
porque lhe traz algum conforto. No caso do racismo, a pessoa está tão identificada
com aquela ideia, que sequer pensa na possibilidade de revisá-la, porque ela
precisa continuar acreditando no que acredita, por razões emocionais.
Em vez de ouvir o contraditório, percebendo o erro em que permanece
voluntariamente, o racista procura pessoas como ele, preconceituosas, para
reforçar as crenças que nutre, porque lhes trazem algum tipo de compensação;
fazem-no crer em sua pretensa superioridade, e rever essa crença seria
colocá-lo nu diante de si mesmo. Deparar-se com a verdade do que é, sem
ilusões, pode ser algo desagradável, apesar de libertador.
Pode ser que seu preconceito tenha nascido daquilo que seus pais
ensinaram, que, por sua vez, foi ensinado pelos pais deles. E de algum modo,
existe um vínculo emocional entre o preconceituoso e aqueles que lhe ensinaram
o preconceito. Repetir aquilo que os pais diziam pode ser algo que, para ele,
de algum modo, honre a memória dos seus pais ou educadores. Discordar seria um
ato de rebeldia, mas até atos de rebeldia partem de um princípio. Não raro, os
filhos que se rebelam contra os pais, contra seus exemplos e ensinamentos,
acabam, inconscientemente, repetindo os mesmos erros que os pais cometiam, porque,
acima de tudo, os pais são uma referência, são o exemplo, e nós tendemos a
seguir muito mais os exemplos do que as palavras.
Parece que vivemos um tempo sem precedentes na luta contra o
preconceito. Hoje, cenas de injúria racial são filmadas e os responsáveis são
criminalizados em alguns casos, com muita luta da sociedade, enquanto, no
passado, o racismo não era sequer percebido pelas pessoas, porque as piadas de
mau gosto pareciam apenas piadas inocentes, embora não o fossem.
Vivemos numa época em que ainda se ofendem minorias, avilta-se a
dignidade de alguns grupos, e ainda se praticam violências com base no
preconceito, sob as vistas grossas do poder policial ou sob a chancela do poder
público, mas essa realidade não está mais sendo tolerada pelo homem do século
XXI. E quanto mais os aviltados pelo preconceito se levantam, mais barulho
fazem os preconceituosos e racistas, que, antes, se sentiam confortáveis com a
discriminação, e agora não podem mais tripudiar o próximo e continuarem saindo ilesos.
Esse levante e aparente tolerância zero contra o preconceito, louváveis
e necessários, tem gerado um movimento cultural que nem sempre atinge o fim visado.
O que se percebe, em grande parte das ocasiões, é uma mudança na linguagem, que
se torna mais polida, porém não é capaz de mudar o preconceito que está no
coração das pessoas. Se é certo que as palavras mais adequadas podem conduzir
as pessoas a ideias mais precisas, mais corretas, mesmo assim parece que o
preconceito resiste.
Podemos usar como exemplo os termos afro-americanos ou afrodescendentes
em substituição a termos pejorativos para designar esse grupo, como negros ou
pretos. De fato, a substituição das palavras é adequada, porque ninguém deveria
ser definido pela sua cor de pele. Por outro lado, palavras diferentes usadas
pela boca de pessoas preconceituosas não mudarão o seu preconceito, assim como
não farão com que esses grupos que sofrem o preconceito deixem de se sentir, de
algum modo, humilhados, por aquela parcela da sociedade preconceituosa e que
teima em se sentir melhor do que os outros. Ou seja, mudam-se os nomes, os
termos, e o preconceito acompanha os novos termos. Os novos termos se desgastam
e é preciso criar novos termos.
É muito comum, por exemplo, pessoas que solicitam benefício para
invalidez perante a Previdência Pública sentirem-se ofendidas porque elas não
são, de fato, “inválidas” no sentido de que não tenham valor. Então o termo é
ofensivo. Ocorre que esse é ainda o termo que vige na legislação brasileira.
Mas não deixa de ser um estigma ser aposentado por “invalidez” (para o
trabalho), porque esse termo afeta a dignidade humana.
Porém, altere-se o termo para um outro mais adequado e as pessoas que se
sentem inferiorizadas por terem essa condição continuarão a se sentirem
inferiorizadas enquanto a sociedade tratá-las como inferiores, não lhes dando
oportunidades. É muito triste, por exemplo, ter um filho amado que tenha alguma
condição incapacitante e seja taxado de inválido pela sociedade.
Há algum tempo, as empregadas domésticas sentiam-se estigmatizadas por
serem chamadas de “empregadas”, porque o termo remetia à ideia de uma pessoa
que tinha um emprego visto pela sociedade como de menor relevância ou menos
digno. Ocorre que o termo empregada ou empregado é adequado, e todo emprego é
digno. Podemos ser empregados de uma empresa, assim como podemos ser empregados
de um patrão só ou uma patroa.
Então, muda-se o termo para “doméstica”, “ajudante” ou “secretária do
lar”, para não diminuir a dignidade da pessoa. Mas não é o termo que diminui
ninguém; é o preconceito que existe na sociedade e na própria pessoa que se
sente estigmatizada. Mudam-se os nomes e o preconceito continua, porque o
orgulho daqueles que se sentem superiores permanece, ou, muitas vezes, permanece
o orgulho ferido de quem se sente inferiorizado com sua condição social.
Se é difícil mudar o preconceito do preconceituoso, não menos árdua é
curar as feridas de quem foi ou é vítima do preconceito. Quando uma pessoa foi ferida
ou aviltada na sua dignidade, oprimida pelo preconceito durante toda a sua vida,
é comum tornar-se um militante da causa antirracista, porque ela sentiu e sente
na pele a violência moral e psicológica que é ser vítima de tratamento
diferenciado, opressivo, discriminatório gerado pelo preconceito, que se
manifesta quase sempre de forma velada, disfarçada.
A causa antirracista e antipreconceito é sempre muito digna e muito
justa, mas às vezes a militância esbarra em algumas dificuldades. Comumente, a
pessoa ferida pelo preconceito pode ter uma visão distorcida dos fatos e dos
acontecimentos que a ferem. Uma pessoa com um nervo exposto tende a sentir dor
mesmo quando esbarre em algum objeto inerte e inofensivo. Alguém que tenha
sofrido preconceito durante toda a sua vida ou, pelo menos, na fase de infância
e adolescência, tende a enxergar no tratamento ríspido ou menos respeitoso do
outro sempre um ato de preconceito, ainda quando não o seja de fato.
Neste caso, muitas vezes, a pessoa vítima da situação desrespeitosa
coloca-se como vítima do preconceito racial mesmo quando não seja o caso, situação
que acaba por ocasionar um desserviço à causa que defende.
A militância antirracista, para fazer frente à parcela da população que
é racista, preconceituosa e discriminatória, acaba por reforçar, justamente,
aquilo que pretende combater, que é o pré-julgamento de qualquer pessoa em
razão de sua cor da pele. Para corrigir as injustiças históricas contra a
população de afro-americanos, é comum, por parte de alguns, por exemplo, a
reinvindicação de ações políticas que, de algum modo, favoreçam pessoas com
determinada cor de pele em detrimento de outras.
Essa questão é bastante complexa e delicada. Se aqueles que são vítimas
do preconceito não ocupam um lugar de fala na sociedade e não reforçam o
orgulho que têm por serem como são, por pertencerem ao grupo a que pertencem, e
se não denunciam a violência, se não a expõem e não a retiram da condição de
violência velada para colocá-la à luz do dia, quem o fará?
Por outro lado, a militância pode incorrer no erro, especialmente quando
se trata de uma pessoa emocionalmente ferida, de tratar com preconceito pessoas
que, por questões de nascimento, tenham o aspecto exterior aparentemente
privilegiado. Se é certo que pessoas de cor de pele clara e olhos claros não
são vítimas do preconceito de raça, avaliá-las como pessoas privilegiadas é uma
forma de julgamento pré-concebido – ou seja, uma forma de preconceito – pois
desconhecemos as dificuldades e sofrimentos pelos quais essa pessoa passou
durante toda a sua vida.
Desse modo, voltamos à questão inicial, de que ninguém deve ser avaliado
pela sua embalagem, mas pelo seu conteúdo. Ninguém pode ser julgado a priori,
nem por ter pele escura, nem por ter pele clara, nem por seu gênero, sua
orientação sexual, sua religião, sua condição ou aparência física, seu sotaque,
sua classe social, seu vocabulário, nem por seu discurso.
Ninguém pode ser considerado uma pessoa boa, nem ruim, apenas por ser
antirracista, feminista, defensor das pessoas LGBTQIA+, defensor dos animais,
por ser vegano, por ter esta ou aquela preferência política, ou por ser
militante da causa antipreconceito. A causa que a pessoa defende, por si só,
não indica que ela seja uma pessoa boa nem má; são suas ações, sua conduta
perante a sociedade que a definirão. E se suas ações não são boas ou não são coerentes,
a causa que defende fica prejudicada.
O mesmo já não se pode dizer com relação a pessoas que defendem ideias
ou posturas que causem sofrimento ou firam a dignidade de outrem. Alguém que
nutre ideias preconceituosas que causam opressão a outras pessoas não pode ser
boa, por mais que, seja uma pessoa bem posicionada socialmente, que seja,
perante a sociedade, aparentemente gentil, educada ou até religiosa.
Pessoas com ideias machistas, racistas, homofóbicas podem até ter um
verniz de educação, mas suas ideias e posturas, por mais inofensivas que
pareçam, são o combustível que gera a opressão e a violência social para com
alguns grupos, a injustiça, a indiferença dos governantes, a exclusão, a
humilhação de muitos e, em última instância, promovem o genocídio, o
feminicídio, o bullying, destroem vidas em suma, sendo corresponsáveis pelas
violências que outros cometem com base nas ideias que eles alimentam.
O preconceituoso, muitas vezes, justifica seus crimes ou os crimes que
outros praticaram pelo fato de que a vítima, na verdade, teria o que merece.
Para o homofóbico, por exemplo, pessoas da comunidade LGBTQIA+ é que estariam
cometendo delitos, apenas por serem o que são, apenas por existirem. Então, os
crimes praticados contra essa população, sejam de injúria, agressão ou
homicídio, estariam tacitamente perdoados, porque o homofóbico crê que tais
pessoas não deveriam participar da sociedade ou que o fato de serem como são se
dá por uma escolha pessoal, e que essa escolha pessoal seria um crime aos seus
olhos, o que não é o caso. É somente o preconceito que o mantém na ignorância
voluntária, a ignorância da real natureza do outro, do diferente de si mesmo,
que ele não compreende e não quer compreender.
Em países democráticos, vivemos a liberdade de expressão. Mas essa
liberdade de expressão vai até o limite em que posso ferir a dignidade ou a
integridade de outro ser humano. Uma pessoa tem o direito de acreditar no que
quiser, mas não tem o direito de expressar-se no sentido de ferir o direito de
outrem, de ameaçar sua dignidade ou sua vida com discursos de ódio, ainda que
esses discursos estejam calcados em crenças religiosas.
Enquanto houver pessoas que alimentam preconceitos que atentem contra a
dignidade de outrem, haverá holocaustos, chacinas praticadas por policiais,
ataques físicos ou morais a pessoas que não pensem como eu ou que sejam
diferentes de mim; haverá a tirania da maioria sobre a minoria, a tirania dos
mais fortes sobre os mais fracos, a opressão social, a injustiça. É uma
violência invisível, naturalizada, normalizada, aparentemente inofensiva, mas
que é a causa dos maiores desastres da humanidade.