Artigo de: Alexandre Paredes
Discursos de ódio começam de forma imperceptível, por meio de uma piada, uma ironia, uma palavra ou expressão originada do preconceito, um apelido que visa a ressaltar alguma característica do outro que nos incomoda.
Mas por que determinadas características do outro nos incomodam a ponto de gerar em nós a necessidade de uma expressão que agride? Geralmente, a piada em forma de agressão verbal ou o termo pejorativo dirigido a alguém nasce do desejo, mesmo que inconsciente, de diminuir o outro, por esta ou aquela característica que o deprecie, pela simples razão de que, se eu não consigo me valorizar pelas qualidades que possuo, preciso diminuir o outro para me sobressair.
Ocorre, também, quando nos sentimos ameaçados em nossa posição no mundo, em nossa visão de mundo, ameaçados pelo diferente, ou porque temos o desejo oculto de possuir algo daquele que é o objeto de nossa agressão.
Chamar o outro de “burguesinha” ou “burguês”, “patricinha” ou “mauricinho”, por exemplo, é uma forma agressiva de adjetivar o outro. Pode ser que se esteja querendo chamar a outra pessoa de frívola ou que ela seja uma pessoa que só está acostumada a uma vida fácil, sem esforço, e isto significa que, se eu denomino o outro dessa forma, é porque não tenho essa falha de caráter, ou, pelo menos, acredito que não. Alguns estudiosos da Psicologia dirão que o que eu critico no outro é aquilo que há em mim de forma reprimida. É o que eu, intimamente, gostaria de ser, mas não posso ser, ou não me foi permitido ser, ou que eu não me permito ser.
Esse exemplo de crítica revela que pode haver um ressentimento pelo que o outro tem e eu não tenho, um ranço pela riqueza que o outro tem ou conquistou e que, ocultamente, eu desejaria ter também. Bastaria ao anti-burguês sair da sua condição menos favorável para uma situação mais privilegiada para vermos seu discurso anterior desaparecer.
Por outro lado, historicamente, o burguês foi uma classe que incomodou os aristocratas, os nobres, donos de terras, que, durante séculos, foram os donos do poder e dos privilégios da sociedade. De repente, o mundo estava mudando, e o valor não estava mais totalmente centralizado na posse de terras, mas, também, na riqueza adquirida pelo comércio. Surgia, então, a classe burguesa, que se enriquecia à base do acúmulo de capital e ameaçava o status quo então vigente.
Se a classe burguesa incomodava o nobre, o mesmo se dava com relação ao clero, que se beneficiada da riqueza que vinha dos senhores de terras, coroava reis, centralizava toda a produção cultural, artística, intelectual durante a Idade Média. No Renascentismo, os burgueses também passam a financiar as produções artísticas e intelectuais, tornando-se uma concorrência ao poder e prestígio da Igreja.
Mas, sobretudo, o clero e os nobres se beneficiavam de uma visão de mundo então vigente na época, uma visão estanque, que dizia que Deus criou tudo assim como é desde o princípio, e era essa a vontade de Deus: que o escravo nasceu para ser escravo e deveria permanecer escravo, que criou o nobre para ser nobre, e os reis tinham essa condição previamente destinada por Deus.
Como se pode perceber, mudar essa estrutura do mundo era uma ameaça a uma visão de mundo que beneficiava determinados grupos de pessoas, de poucas pessoas, mas poderosas. Por isso, a Igreja, enquanto enriquecia, condenava o enriquecimento, por considerar ser ele decorrente do pecado da usura, porque, no fundo, não lhe era conveniente a mudança na estratificação social, nem uma mudança na visão de mundo.
A condenação da usura até podia ser legítima do ponto de vista moral, mas era só um subterfúgio, um pretexto, que escondia as verdadeiras razões dessa condenação: a ameaça ao poder da Igreja, pois, de acordo com a visão criacionista do mundo, tudo foi criado desde o princípio como é, porque sempre foi assim e sempre será assim, porque essa era a vontade de Deus.
Assim, uma simples crítica ao modo de vida burguês traz consigo toda uma história de discursos de ódio, que vão sendo reproduzidos por gerações, sem que nos apercebamos que apenas estamos reproduzindo discursos, ou que simplesmente temos inveja da situação social de outra pessoa, que nos incomoda porque, no fundo, gostaríamos de gozar da mesma situação.
O termo “vilão”, usado atualmente para designar aquele personagem vil, maldoso de qualquer estória de ficção, significa apenas “aquele que morava numa vila”. Na época dos senhores feudais, os vilões eram aqueles que tinham um menor grau de servidão perante o feudo e se aproximavam dos nobres, obtendo deles alguns privilégios. Por isso, deveriam ser invejados pelos demais servos, que viviam em estado de semi-escravidão.
É possível, também, que essa designação pejorativa para o vilão tenha se intensificado com o passar dos séculos, na medida em que as classes mais privilegiadas de outros tempos, os burgueses e os proprietários de terras, se sentissem ameaçados pelos vilões, ou moradores das vilas, ou a “plebe rude”, classe que, provavelmente, era assim chamada para que aqueles que usavam essa expressão pudessem destacar em si a nobreza de sua classe social, seu sangue azul ou sua riqueza que os diferenciava dos demais. Ou seja, aquela velha necessidade de diminuir o outro para que eu possa brilhar.
No mundo moderno, encontramos várias expressões que denotam esse ódio oculto, que transborda em forma de brincadeiras inocentes. A expressão “loira burra” é uma delas. Deve ter nascido do ressentimento daquelas que se sentiam ofendidas pela beleza de uma bela mulher loira, mas também oprimidas por uma visão de beleza eurocentrista, isto é, calcada na dominação cultural europeia, que humilhava aquelas que não se enquadrassem nesse padrão. Então, para ofuscar aquela que acredito ser mais bela ou para me vingar da dominação cultural do modelo de beleza imposto pela cultura dominante, foi preciso achar um defeito que a tornasse motivo de depreciação, para consolar e compensar a falta de beleza que eu acredito possuir. “Pelo menos, sou inteligente”, diriam.
Essa expressão pode ter nascido também do desejo oculto daqueles homens que gostariam de enamorar mulheres com esse perfil, mas acreditavam não estar à altura de tais desejos. Então, coloca-se um defeito no objeto de desejo. Assim como, na fábula da raposa e as uvas, a raposa desdenha do objeto de seu desejo, as uvas, quando não consegue alcançá-las: “estavam verdes”, diz a raposa.
Uma forma de ódio camuflado é ensinada às crianças desde pequenas quando se deparam com um menino efeminado. Mas em que aspecto uma pessoa com orientação sexual diferente da minha poderia ser tão ameaçador a ponto de criarmos tantas piadas que depreciam homossexuais e tantos nomes pejorativos para os diminuírem? É porque a simples existência do homossexual ameaça uma visão de mundo, de muitas pessoas, que diz que tudo o que está escrito na Bíblia (ou em qualquer outro livro sagrado, a depender da cultura de um povo) é a palavra de Deus.
Ora, se está escrito em algum lugar do Velho ou Novo Testamento qualquer trecho de algum personagem condenando práticas homossexuais, isto é para algumas pessoas o mesmo que Deus condenar a homossexualidade, apesar de a Bíblia ter sido escrita por seres humanos, falíveis, imersos numa determinada cultura, de uma determinada época. Nada mais triste do que o ódio praticado contra homossexuais, que são levados a acreditar que sequer podem buscar a misericórdia divina, já que Deus os condenaria, segundo os interpretadores da Bíblia.
Admitir que a homossexualidade é um fenômeno natural entre os seres humanos, que não é uma doença nem um desvio moral, seria admitir que há coisas escritas na Bíblia que não correspondem à palavra de Deus, que foram escritas por pessoas que manifestaram seu pensamento, adequado a um momento histórico, a um contexto, e que nem sempre o que lá está escrito, e da forma como foi interpretado, é a expressão absoluta da verdade.
Para os que condenam os homossexuais, o mote é a defesa dos
chamados “valores tradicionais“ e o que seria uma “família cristã”. Ocorre que
não existe uma definição do que seriam os chamados valores tradicionais ou o
que seria uma família cristã, senão aquelas definições estabelecidas por homens
falíveis, interpretadores de textos sagrados, que se transformaram em dogmas
pelas igrejas constituídas.
Ocorre, também, que, ao atacar um ser humano, por meio da
agressão verbal ou física, ou por meio do desprezo ou a indiferença, o pretenso
cristão fere a lei áurea do próprio Cristianismo, que é “não fazer ao outro o
que não gostaria que lhe fosse feito” e o “amar ao próximo com a si mesmo”. Além disso, o próprio Cristo, cujas palavras
parecem ser, muitas vezes, voluntariamente ignoradas, afirma que “todo aquele
que faz a vontade do meu Pai é minha mãe e são meus irmãos”, ou seja, o
conceito de família apresentado por Jesus se alarga além dos horizontes
acanhados do que seria uma família tradicional, na medida em que ele valoriza
mais os laços de afeição e afinidade recíprocas do que os laços consanguíneos.
Dentro dessa perspectiva da lei áurea do Cristianismo, que
é compartilhada pelas principais religiões do mundo, uma família não
tradicional, feita por casais homoafetivos, pode ter muito mais amor e valores
dentro do lar do que uma família tradicional, de pai, mãe e filhos, que se diga
cristã e tradicional. E, na prática, o que as pessoas fazem entre quatro
paredes não pode ameaçar o que ocorre dentro de outras milhares de quatro
paredes. A homossexualidade não é uma doença e muito menos uma tendência contagiosa
que possa ser transmitida a quem não tenha essa condição.
Então, não há razões lógicas para que pessoas
heterossexuais se sintam ameaçadas, e aqueles que têm orientação sexual
diferente destes não deveriam se sentir diminuídos, indignos, menos humanos ou
errados apenas por serem diferentes, apenas por serem uma minoria. Nossa
história está repleta de exemplos de minorias que foram perseguidas pela
ignorância e o medo daqueles que faziam parte das maiorias. Foi assim com os
canhotos, que, durante séculos, foram estigmatizados, demonizados e obrigados a
escreverem com a mão direita. O mesmo se deu com relação aos albinos, que
foram, e ainda são em algumas partes do mundo, perseguidos, estigmatizados,
apenas por terem características genéticas recessivas.
No fundo, os discursos de ódio de pessoas homofóbicas, como
tantos outros, nascem, além da ignorância e do medo, da não percepção de que
suas convicções são apenas suas convicções; de que seus valores elegidos podem
não ser os mesmos na escala de valores do outro; de que seu sistema de crenças
pode não ser compartilhado por uma multidão de outras pessoas. Nasce da não
aceitação do diferente de si mesmo, e da imensa identificação com as próprias
ideias, como se fossem a verdade absoluta.
Quando Copérnico e Galileu afirmaram que não era a Terra o centro do Universo e que os planetas, inclusive o nosso, é que giram em torno do Sol, por que essa verdade foi tão combatida e causou tanto ódio a ponto de levar Galileu à prisão domiciliar pela Santa Inquisição? Pelo simples motivo de que essa verdade vinha fazer cair por terra a ideia pregada pela Igreja, de que suas verdades eram prescritas por Deus e, por isso mesmo, eram infalíveis. A partir do momento em que a Igreja e seus interpretadores de textos sagrados admitissem sua falibilidade, todo o edifício dos dogmas ficaria comprometido.
Talvez seja por esse motivo que vemos, em nossos dias, com todo o conhecimento científico já conquistado pela nossa sociedade, pessoas defendendo a teoria de que a Terra seja plana, e não esférica como já comprovado pela Ciência, pelos navegadores e pelas imagens de satélites. Quando minha visão de mundo fica comprometida pelas evidências, uma estratégia da minha mente para não ceder à total desestruturação do meu sistema crenças é a negação e o combate àqueles que se opõem ao meu paradigma, criando sistemas e malabarismos teóricos para poder manter de pé todo o edifício de minhas crenças.
Pois rever todo um sistema de crenças é um trabalho árduo, doloroso e, muitas vezes, humilhante, embora libertador. Então é mais fácil eu combater todos aqueles que se opõe a esse meu sistema e buscar ao meu redor pessoas que compartilhem e reforcem essa mesma visão de mundo, ainda que irracional, ainda que insustentável diante das evidências.
Na nossa era da informação, as redes sociais e mídias digitais tornaram mais fácil esse caminho. Todos falam, todos opinam, mas geralmente escutam somente aqueles que compartilham das mesmas ideias; dificilmente escutam aqueles que se posicionam de forma diferente. Quando escutam, ou quando leem os posts até o fim, é somente com o objetivo de buscar argumentos que se opõe aos argumentos daquele que acreditam ser o adversário, e também para obterem o aplauso da plateia por meio de likes.
Nesse ponto, fica claro que, mais do que defender pontos de vista, há uma necessidade do ser humano de defender o seu ego, ganhar curtidas, aplausos, visualizações, de ganhar notoriedade perante o mundo, e é justamente essa supervalorização do seu ego que alimenta o ódio; que torna mais difícil perceber o outro, o diferente de si; que alimenta, enfim, uma multidão de desentendimentos, porque não é a vitória da verdade que se procura, mas a vitória sobre o outro.
É por conta dessa dificuldade em rever sistemas de crenças, passados de geração a geração, que, ainda hoje, existem movimentos sociais para que as escolas ensinem a visão Criacionista da Bíblia (de que Deus tudo criou em seis dias e de que toda a humanidade teria surgido de Adão e Eva) em contraposição à Teoria da Evolução das Espécies, de Darwin, amplamente aceita pela comunidade científica, como se ambas estivessem no mesmo patamar de teorias científicas, o que não é o caso.
Há quem ainda defenda a interpretação ao pé da letra da Bíblia, mesmo que vá totalmente de encontro às evidências. Quando, por exemplo, a Ciência revela fósseis de animais que viveram há mais de duzentos milhões de anos em nosso planeta, a ideia de que a origem de tudo na Terra tenha ocorrido há apenas alguns milhares de anos, como era pregado pela Igreja há alguns séculos, cai por terra.
O Darwinismo foi uma grande mudança de paradigma e um duro golpe ao sistema de crenças daqueles que interpretavam a Bíblia de modo literal e daqueles que acreditavam na infalibilidade dos dogmas das suas igrejas. Isto gerou uma necessidade de revisão da forma de interpretar a Bíblia. Para muitos, gerou a descrença, apesar de não haver nenhuma contradição entre o fato de Deus ter criado tudo e a evolução das espécies. Nada mais lógico do que Deus ter criado tudo para evoluir e progredir sempre, em vez de tudo pronto e acabado. Para outros, o evolucionismo deveria ser combatido até o fim, gerando a base de muitos fundamentalismos religiosos e discursos de ódio que vemos em nosso tempo.
A visão de que Deus tudo criou de forma estanque e com uma finalidade inicial imutável se contrapõe frontalmente à ideia de mudanças constantes, de evolução, de progresso. Na visão da Igreja, toda a Criação de Deus observava uma hierarquia que não mudava: os anjos teriam sido criados anjos e para sempre serem anjos; os homens teriam sido criados com um papel previamente definido na Criação e com status privilegiado em relação aos seres dos demais reinos da natureza; enquanto os animais teriam sido criados para servir aos homens. Ou seja, nessa concepção de Criação, Deus não seria justo, pois teria criado seres privilegiados – os anjos – e seres eternamente condenados à inferioridade – os animais. A ideia de evolução, ao contrário, permite que os seres estejam sempre se aperfeiçoando e subindo degraus na escala da evolução.
Essa mesma hierarquia se refletia na vida social, na forma de castas ou estamentos: o rei, no alto da pirâmide, era, assim como Deus, a representação do poder absoluto; os nobres, assim como os anjos, foram criados para serem nobres e era da vontade de Deus que assim o fosse; os escravos haviam sido criados para servir aos homens; e o clero, que também era uma classe privilegiada, já tinha seu papel definido por Deus. Ora, a partir do momento em que se admite que tudo evolui, que os homens evoluíram dos primatas, isto implica que a ordem social também pode e deve evoluir, que os escravos e os operários não nasceram com essa condição devido à um desígnio prévio da divindade, nem que os donos de terras são nobres por um decreto divino.
Até hoje sentimos os efeitos dessa mudança de paradigma, daqueles que ainda se apegam à ideia de que tudo e todas as criaturas já têm um papel previamente definido pela Criação e se contrapõe às ideias chamadas progressistas. Esse apego à ideia de que tudo foi criado para ser como é ou como era tem também outro motivo: o de que a minha posição no mundo, minha zona de conforto, passa a ser ameaçada.
Um exemplo disso é o machismo. A ideia de que Deus criou Adão do barro e Eva a partir da costela de Adão parece ser bem conveniente ao machista. Esse mito da criação de Eva deve ter ignorado propositalmente que é a mulher quem carrega um ser em seu ventre durante nove meses e dá à luz um novo ser. Para o machista, a mulher foi feita para servir ao homem, sendo inferior a este. Isto lhe é conveniente para que ele possa continuar a agir como um déspota, não tenha sua superioridade questionada e continue a usar a mulher como um objeto para o atendimento de suas necessidades.
Quando as mulheres passam a ter voz na sociedade e empoderam-se, e não mais se submetem aos caprichos do homem, ele se sente ameaçado e inseguro, e quer voltar aos tempos em que tudo estava sob o seu domínio. Daí vem os discursos de retorno à família tradicional e de combate ferrenho a outros paradigmas de família que não se enquadrem no seu conceito de família, no qual tem o homem o papel de superioridade, enquanto a mulher, de submissão e subalternidade. Surgem os discursos de retorno ao passado, de que antigamente havia maior senso de moral, o que é uma tese que não se sustenta; basta olhar para o passado e ver o Holocausto, a bomba atômica, o genocídio de povos indígenas e a crucificação romana.
Na verdade, o machismo deve ser uma postura com raízes em nossos ancestrais primatas, quando a sociedade, ainda animalizada, era dominada pela força bruta. O mito da criação de Eva veio, provavelmente, somente para chancelar um costume já existente na sociedade e sempre tido como normal. Mas há interpretações sobre o mito de Eva que seriam mais favoráveis à exaltação do papel da mulher, pois se ela nasceu da costela de Adão, compartilha com ele o mesmo status de humanidade, o que já era um avanço para a mentalidade vigente à época das sociedades primitivas, quando prevalecia a lei do mais forte.
O ódio das classes menos favorecidas é o mais compreensível, mas também não é legítimo, se é que exista algum ódio legítimo. Aquele que vive em condição de maior dificuldade, que foi oprimido sua vida inteira, pela sociedade, pelo sistema, pela polícia, pela justiça, pelas leis injustas, acaba deixando-se levar pelo ódio aos privilegiados, aos governantes, aos agentes do Estado, de forma indiscriminada. Acaba por odiar, inclusive, aqueles que, embora tenham nascido em condições melhores, com mais oportunidades, foram trabalhadores, justos, criaram empregos e podem ter feito bem a um sem-número de pessoas.
Mas o ódio não vê isso, porque ele é cego. Seu alvo é o outro, o diferente, aquele que faz parte do outro lado do sistema e, numa visão simplista, se não é oprimido, é opressor. Pois o ódio é como o fogo: um incêndio pode ser iniciado tendo por foco algo ou alguém, mas acaba se alastrando e afetando a todos e, na maioria das vezes, afetando pessoas inocentes, que não têm nenhuma relação com o objeto do ódio. No fim das contas, o ódio, assim como o fogo, acaba queimando, em algum momento, quem ateou o fogo primeiro.
Essa cegueira do ódio é bem exemplificada em algumas situações de nosso cotidiano. Não é raro vermos uma pessoa ser linchada porque a população revolta-se contra um crime e, logo em seguida, descobre-se que a pessoa linchada não era o criminoso. Mas, ainda que fosse linchada a pessoa certa, essa prática é totalmente bárbara e pré-histórica, não tendo nenhum respaldo no verdadeiro senso de justiça. A justiça autoriza a punição, a reparação de um dano, de forma proporcional ao crime cometido, mas não a satisfação do nosso ódio.
Em protestos contra determinadas injustiças, os revoltosos cometem injustiças tão infelizes quanto as primeiras: saqueiam lojas, queimam prédios, depredam o patrimônio público. Nesse momento, os revoltosos igualam-se ou colocam-se em condição inferior àqueles que são o objeto do seu ódio.
No Oriente Médio, crianças palestinas já nascem aprendendo a odiar judeus e crianças judias aprendem desde cedo a odiar palestinos. Não importa para quem odeia se aquele que está do outro lado do muro está trabalhando, por exemplo, para impedir que o conflito se perpetue, que seja um pai de família honrado, que luta pela paz, pela justiça social. Se o objeto do ódio é o palestino ou o judeu, não se faz nenhuma distinção, pois o ódio rotula o outro antes de ele ser conhecido pelo que é, e iguala ou nivela todos que estão sob esse mesmo rótulo.
Após os atentados de 11 de setembro de 2001, muitos cidadãos islâmicos que viviam nos Estados Unidos foram vítimas de violência verbal ou física, como se eles tivessem alguma relação com os terroristas que realizaram os atentados. Para efeito de comparação, seria algo como os judeus odiarem todos os cristãos do mundo em razão dos milhões de mortos no Holocausto, perpetrado pelos nazistas alemães, já que eles eram, em tese, cristãos.
Odiar o outro pelo seu rótulo é irracional e seria uma grande bobagem se não fosse algo tão sério, tão danoso. Para o que odeia, o rótulo vem antes da pessoa, do que ela é, de como ela é de fato, seu caráter, suas virtudes e suas ações. Então o ódio rotula o outro por vários nomes, dando mais importância à embalagem do que ao conteúdo, tenha essa embalagem o nome que for: nordestino, negro, branco, ateu, muçulmano, cristão, católico, evangélico, judeu, gay, feminista, conservador, liberal, progressista.
Não importa como é essa pessoa, quais são as suas ideias; ela já é odiada pelo rótulo com que foi designada e é, pretensamente, conhecida antes mesmo de se manifestar no mundo, como se cada um de nós fizesse parte de um pacote completo, um combo de ideias e comportamentos. É como se a partir da minha cor de pele, meu país de nascimento, minha classe social, orientação sexual, preferência política ou ideológica, eu fosse igualado a quaisquer outras pessoas que partilham da mesma embalagem.
De maneira geral, fazemos com o outro algo semelhante ao que os nazistas fizeram com os judeus, só que de maneira virtual. Os judeus foram obrigados a sair às ruas com uma marca que os designassem, que era o símbolo da estrela de Davi no braço, de modo que os demais pudessem saber previamente que aquele ser humano se tratava de um judeu. Depois esses judeus foram colocados em guetos, depois em campos de extermínio e câmaras de gás.
O que nós fazemos é designar as outras pessoas por um determinado rótulo, que nos permite a sua identificação prévia. Com essa identificação, nós já as avaliamos e já as julgamos, e as colocamos num gueto virtual. A partir desse momento, não ouvimos o que essa pessoa tem a nos dizer, pois ela é alguém que representa ideias que devem ser combatidas ou exterminadas. E, em vez de combatermos ideias ruins com ideias melhores, com argumentos racionais, combatemos com o ódio à pessoa, denegrindo sua imagem, sua biografia.
O fato é que existem pessoas com comportamento ético e não ético entre liberais e conservadores, entre pessoas de preferências políticas de direita e de esquerda; há pessoas de bem, sábias e virtuosas entre religiosos e ateus, assim como há hipócritas e criminosos em ambos; há pessoas educadas e gentis em quaisquer nações ou etnias, e o contrário também, pessoas grosseiras, mal-educadas e vis em qualquer parte do mundo e qualquer cor de pele. Porque não é a embalagem que faz o conteúdo.
Em tempos de redes sociais, o ódio ganhou contornos sofisticados. Agora, não é mais a simples fofoca, a calúnia ou a mentira, mas uma rede de fake news, articulada, organizada, sistematizada para conduzir cardumes de pessoas a determinadas ideias e direções. Essa sistematização de notícias falsas atende a interesses de determinados grupos, que odeiam e manipulam o ódio, ou apenas se beneficiam dele. Em nosso tempo, o ódio se manifesta na forma de uma guerra de informação, contra-informação e desinformação, não para engrandecimento de um debate, mas para a anulação dos adversários, de suas ideias, para que prevaleçam as minhas, para que prevaleça minha visão de mundo e meus interesses, quase sempre disfarçados de interesse público.
Não é possível falarmos de discursos de ódio sem falarmos de ódio. Quando pensamos nele, imaginamos, na maioria das vezes, aquele inimigo visceral, o criminoso que ceifou a vida de um ente querido, aquelas pessoas que disputam terras e matam umas às outras, aqueles familiares que sempre se digladiaram por disputas de egos, de dinheiro, bens ou de atenção. Esse é o ódio que conhecemos e que, para muitos de nós, parece-nos distante, parece pertencer ao outro, pois odiar não é uma virtude nem algo muito bonito; não é um sentimento que gostaríamos de admitir.
Mas, se nem sempre temos facilidade de admitir que nutrimos esses grandes ódios, chamo a atenção para esses pequenos ódios, que nascem como uma faísca, uma fagulha, um palito de fósforo. E nenhum de nós está totalmente isento de ser essa fagulha ou de ser a palha que, de algum modo, propaga esse pequeno fogo e que acaba se alastrando e tomando proporções de incêndio.
Quando olhamos para o mundo que nos cerca, quantas vezes podemos dizer que não nos enquadramos e não embarcamos em determinados discursos de ódio, em piadas de mau gosto, em comentários sem reflexão sobre outras pessoas, em análises superficiais sobre nações, povos, políticos, grupos, religiosos e religiões? Quantas vezes não somos nós mesmos quem acendemos o fósforo ou a fagulha do ódio e contribuímos para o aumento da fogueira que existe no mundo?
De repente, o ódio bate à nossa porta, na forma de violência, mentira, maldade, calúnia ou desequilíbrios da parte de outras pessoas, e acreditamos que somos tão somente vítimas, mas cabe sempre perscrutar a nossa própria consciência para investigar até que ponto não somos coautores da permanente guerra em que nosso mundo está mergulhado.
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