terça-feira, 3 de maio de 2022

Preconceito

Artigo de: Alexandre Paredes 








Como o próprio nome indica, preconceito quer dizer um conceito previamente formado, ou seja, pré-estabelecido mesmo antes de se conhecer aquilo que se apresente para nós ou o que acreditamos conceituar ou conceber. Geralmente, está associado a uma percepção negativa prévia sobre algo ou alguém, que faz com que a pessoa o rejeite antes que possa conhecê-lo de forma mais aprofundada.

 

O preconceito pode ser sobre qualquer coisa: um estilo musical; a aparência exterior de uma pessoa ou de um objeto, que nos leva a julgá-lo mesmo sem conhecê-lo; um produto à venda por determinada marca, que é avaliado, por exemplo, segundo algo que ouvimos falar; pode ser sobre uma determinada cultura, religião ou povo; uma ideologia política; um alimento, que, pela sua aparência ou cheiro, julgamos previamente seu sabor; além das clássicas e mais danosas formas de preconceito, baseadas na cor da pele de uma pessoa, na sua orientação sexual ou seu gênero.

 

Ninguém está a salvo de ser preconceituoso, porque, de modo geral, todos temos crenças, visões de mundo, experiências ou percepções cristalizadas. E quanto mais avançamos na idade, mais difícil se torna reformular conceitos e demolir preconceitos cristalizados, que são como verdades dentro de nós que não ousamos contestar, questionar, porque são, de algum modo, convenientes ou cômodas.

 

Ideias preconcebidas ou preconceituosas não costumam ter uma base racional, simplesmente porque, para se formar um conceito ou estabelecer qualquer julgamento sobre algo ou alguém, são necessários, primeiramente, o conhecimento, a observação e a formulação de argumentos que darão sustentação àquelas ideias.

 

Se tivéssemos o hábito de questionar a nós mesmos, diariamente, sobre o porquê de acreditarmos no que acreditamos, quais os fundamentos racionais que sustentam nossas verdades, nossas crenças, iríamos nos surpreender.

 

Porém, o que ocorre é que a nossa mente prega peças. Não raro, elaboramos sofisticados sistemas de crenças, aparentemente racionais, para justificar nossas paixões, vícios, condutas não muito corretas ou coerentes, e torná-las moralmente aceitáveis aos nossos próprios olhos e aos olhos da sociedade, fazendo com que nos sintamos mais confortáveis em permanecer alimentando as paixões ou vícios aos quais nos entregamos.

 

Assim, os nossos sistemas de crenças, que parecem tão lógicos e racionais, geralmente são subvertidos pelas nossas paixões, nossos fracassos, traumas, medos, experiências psicológicas não bem digeridas e coisas que nos ensinaram quando éramos crianças. É como um iceberg: nossos sistemas racionais estão, na verdade, apoiados em uma montanha que fica submersa, e que é bem maior que a parte emersa. Essa parte de nós escondida, em grande medida influencia ou comanda nossos raciocínios.

 

O preconceito, então, tem origem muito mais em aspectos psicológicos e emocionais do que em bases racionais. Por isso que é tão difícil mudar sistemas de crenças e preconceitos, porque eles estão apoiados em questões subjetivas do ser humano. Podemos citar o exemplo do preconceito de raça. Não há uma base lógica para sustentar que uma determinada raça seja superior a outra.

 

Em primeiro lugar, porque do ponto de vista genético, não existem propriamente “raças”. Uma pessoa de aparência caucasiana, seja ela de qualquer lugar do mundo, terá genes de diversas etnias. Pessoas de diversos locais do planeta, quando submetidas a um mapeamento genético, descobrem, invariavelmente, que são o resultado do cruzamento de diversas “raças”, ou seja, possuem ancestrais de diversas etnias, mesmo aqueles que se consideram raças “puras”.

 

Desse modo, aquilo que consideramos “raças” são apenas aparências exteriores, que geralmente não condizem com a realidade genética de cada ser humano. Uma pessoa nascida na Europa, por exemplo, será invariavelmente descendente de várias etnias que se entrecruzaram durante séculos no continente, como os Mouros, os Visigodos, os Ostrogodos, Anglos, Saxões, Celtas, Gauleses, Vândalos e daí por diante.

 

Em segundo lugar, porque os argumentos utilizados para validar a tese de que determinadas raças ou determinados povos seriam superiores a outros parece desprezar o aspecto histórico e cultural. Os povos europeus, de modo geral, alimentaram, durante muito tempo, a ideia de superioridade em relação a outros povos, mas essa pretensa superioridade somente se deu pela ação da força militar, da violência, da subjugação. Os povos vencidos nas guerras eram escravizados e, naturalmente, não puderam se desenvolver tanto quanto os povos vencedores.

 

Os romanos venceram os gregos no século III antes de Cristo, de modo que se tornaram escravos na sociedade romana, mas isto não significa que os gregos eram ou sejam inferiores. Basta lembrarmos das conquistas de Alexandre, o Grande, da Macedônia, que expandiu a cultura grega por grande parte da Europa, Ásia Menor e África. Por razões históricas, em um dado momento, os gregos foram sobrepujados pelos romanos, pela força, mas sua cultura permaneceu influenciando o mundo romano, assim como nos influencia até hoje. O mesmo se deu com o povo hebreu, que foi subjugado pelos romanos, e até hoje estudamos a Bíblia, que é um dos seus legados.

 

Roma poderia ter diversas virtudes, como o impulso civilizatório, os avanços na engenharia e as ideias de justiça, porém trazia também características execráveis, como a violência e a escravização de seres humanos, que foi uma das mais perversas da história da humanidade.

 

Então, se os povos indígenas e africanos foram sobrepujados pela força, isto não indica inferioridade desses povos em relação aos europeus. O que ocorreu foi a dominação de um povo sobre outro por meio da violência, seja ela explícita, como a imposição pelas armas, seja ela um pouco mais velada, que é a imposição cultural. E a violência, por mais que seja generalizada no mundo, deve ser vista como uma característica negativa de um povo, e não como uma boa qualidade. Ocorre que a história que estudamos foi contada pelos vencedores, ou seja, pelos mais violentos ou aqueles que conseguiram superioridade tecnológica-militar para vencer e escravizar outros povos.

 

Mas tanto a cultura indígena quanto a africana influenciam-nos até hoje. Sem a contribuição indígena, não conheceríamos, por exemplo, as riquezas da nossa flora para uso medicinal ou para alimentação. O hábito de tomar banho diariamente é também um legado dos povos indígenas brasileiros. Ainda hoje, temos muito a aprender com os indígenas sobre sua relação com a natureza, uma vez que nossa cultura ocidental tem ocasionado a destruição do planeta.

 

Sem a contribuição africana, provavelmente não teria nascido o Rock, certamente o Pop não teria surgido como o conhecemos, não teríamos conhecido o Hip Hop, o Street Dance nem o Break Dance. Sem o legado dos afro-americanos no Brasil, certamente não teríamos conhecido o Samba e nossa cultura seria infinitamente mais pobre e menos alegre; teríamos, também, muito menos riqueza na área da espiritualidade.

 

Diante dessas questões, por que, então, existe o racismo? Basicamente, o racismo é ensinado, passado de pai para filho por meio da educação, ou deseducação neste caso. Mas ele nasce, e se fixa, principalmente da necessidade do ser humano de se sentir superior a outro ser humano, ou seja, nasce da exaltação do ego, do orgulho em suma.

 

Para se sentir melhor que as demais pessoas, criam-se ideias de que minha cidade é melhor do que a sua, meu país é melhor do que o do outro, a raça ou cor de pele a que pertenço é melhor do que a do outro, assim como o time de futebol que elegi para torcer é melhor do que o seu.

 

Trata-se do mesmo mecanismo que nos faz pensar que eu sou melhor que alguém porque tenho um carro sofisticado ou porque uso uma roupa de marca, ou porque tenho uma bela casa, que sou melhor do que os outros porque pertenço a uma classe social superior. Se participo de classe social inferior, eu ressalto que não sou como essas pessoas de nariz empinado, ou seja, que supero esses que se sentem superiores a mim devido à minha “humildade”. Na verdade, esse tipo de humildade é só mais uma forma de orgulho camuflado.

 

Não há nada de prévio que possa determinar que uma pessoa seja melhor do que a outra. Sua cor de pele, seu status, a roupa que veste, seu sotaque, sua religião, sua ideologia política, seu grau de escolaridade, seu país, sua cidade de nascimento, seu vocabulário, nada disso torna uma pessoa, a priori, melhor do que ninguém. São as nossas atitudes que nos definem, independentemente da embalagem por meio da qual nós nos apresentemos.

 

    O preconceito de raça nasce, também, da falsa percepção de que o outro pode ser uma ameaça para mim. Se é diferente de mim, se vem de fora, é alguém que não faz parte da “minha” comunidade. Esse tipo de preconceito é facilmente ilustrado pela xenofobia, a aversão ao estrangeiro, que é visto como alguém ou um grupo que pode tirar nossos empregos, subverter nossos valores, tornar nossa sociedade pior ou deturpar nossa identidade.

 

Quando ocorrem ataques terroristas, por exemplo, essa xenofobia se torna mais clara e evidente. Se nosso país é atacado por pessoas que se dizem islâmicas, passamos a alimentar o preconceito contra pessoas que usam burca ou leem o Alcorão, ainda que essas pessoas nada tenham a ver com o terrorismo e ainda que a religião islâmica não endosse atitudes violentas.

 

Às vezes, esse sentimento de ameaça vem de dentro. Nos Estados Unidos, após a Guerra da Secessão e abolição da escravidão, algumas comunidades de afro-americanos daquele país começaram a prosperar, a ter algum poder aquisitivo e se tornaram uma população numerosa. Essa população começou a reivindicar os mesmos direitos dos demais cidadãos. Assim, aquela parcela da população que ainda alimentava ideias escravocratas, sentindo-se ameaçada, patrocinou chacinas a afrodescendentes e criou leis discriminatórias e de segregação racial, que somente ao custo de muitas lutas, perseguições e vidas perdidas, foram sendo derrubadas ao longo de várias décadas.

 

No Brasil, não houve uma guerra da secessão, não houve, exatamente, uma segregação de maneira formal, mas eles foram segregados de forma cultural. A discriminação e o preconceito foram naturalizados. Os próprios brasileiros acreditavam que não havia preconceito racial no Brasil, afinal não se jogam cascas de bananas nos estádios e Pelé foi e ainda é o maior ídolo do país.

 

Sempre se acreditou na fantasia de que os negros e os mestiços sempre foram bem tratados no Brasil, assim como na fantasia de que, na época da escravidão, os escravos viviam bem, servindo aos seus senhores, que eram humanos e gentis. Essa realidade mudou quando pessoas com cor de pele escura passaram a conseguir, com muito custo e muita luta, ascender socialmente.

 

Enquanto o negro permanecer na senzala ou, traduzindo para os dias atuais, nos empregos de menor expressão social ou de subserviência, os preconceituosos não se sentem ameaçados e permanecem silenciosos, dando a sensação de que eles nunca existiram por estas bandas. Entretanto, basta que os afrodescendentes conquistem postos na sociedade e empoderem-se, para que os racistas se sintam ameaçados, saiam de sua situação de conforto, e apareçam para atacar e mostrar suas garras.

 

Pessoas racistas têm problemas com sua própria autoestima. Podem até parecer que são bem resolvidas consigo mesmas, com sua aparência, com sua vida, com seu emprego, mas têm necessidade de ficarem se autoafirmando, precisam dizer ou mostrar para o mundo que têm bens, que são bem-sucedidas, que são superiores, que são melhores do que outros, que têm um belo corpo ou que são muito inteligentes. Quando não têm nada disso, maior é o motivo de se autoafirmarem por meio da falsa ideia de que sua cor de pele é superior à cor da pele do outro. É um mecanismo de compensação. Sempre que precisamos mostrar, de forma exagerada, algo para o mundo, repetir, é porque não nos sentimos seguros se somos tão bons mesmo quanto a propaganda que fazemos de nós mesmos.

 

Isto explica a atitude de uma pessoa que humilha outra em público por conta de sua cor de pele. É uma necessidade de autoafirmação. No fundo, ela precisa humilhar a outra pessoa, ressaltando aquilo que ela crê ser um motivo de inferioridade – no caso, a cor da pele – porque tem necessidade de se sentir superior, e só tem necessidade de se sentir superior quem se sente inferiorizado por algum motivo, ou quem tem dúvidas quanto às próprias virtudes, qualidades, quanto à própria capacidade de ser atraente, interessante, somente por conta de suas características morais ou físicas.

 

            Às vezes, ocorre também quando a pessoa tem uma bela aparência ou status, e até sabe disso, e fixa-se de forma obsessiva nessas questões exteriores porque se sente insegura quanto às próprias qualidades morais ou intelectuais. Então ataca aqueles que, segundo crê, sejam menos belos ou sejam de classe social inferior, por meio do desprezo, da ironia, do deboche, que nada mais são do que declarações, em alto e bom som, de que tal pessoa só tem isso a que se agarrar, porque crê que lhes faltam as qualidades interiores.

 

Ocorre que o preconceituoso geralmente não se percebe como tal. Ele acredita que suas ideias preconcebidas são uma verdade. Como a verdade do preconceituoso não tem base racional, ela se parece com um dogma religioso, que é uma verdade imposta por uma autoridade, verdade à qual a pessoa se entrega porque lhe traz algum conforto. No caso do racismo, a pessoa está tão identificada com aquela ideia, que sequer pensa na possibilidade de revisá-la, porque ela precisa continuar acreditando no que acredita, por razões emocionais.

 

Em vez de ouvir o contraditório, percebendo o erro em que permanece voluntariamente, o racista procura pessoas como ele, preconceituosas, para reforçar as crenças que nutre, porque lhes trazem algum tipo de compensação; fazem-no crer em sua pretensa superioridade, e rever essa crença seria colocá-lo nu diante de si mesmo. Deparar-se com a verdade do que é, sem ilusões, pode ser algo desagradável, apesar de libertador.

 

Pode ser que seu preconceito tenha nascido daquilo que seus pais ensinaram, que, por sua vez, foi ensinado pelos pais deles. E de algum modo, existe um vínculo emocional entre o preconceituoso e aqueles que lhe ensinaram o preconceito. Repetir aquilo que os pais diziam pode ser algo que, para ele, de algum modo, honre a memória dos seus pais ou educadores. Discordar seria um ato de rebeldia, mas até atos de rebeldia partem de um princípio. Não raro, os filhos que se rebelam contra os pais, contra seus exemplos e ensinamentos, acabam, inconscientemente, repetindo os mesmos erros que os pais cometiam, porque, acima de tudo, os pais são uma referência, são o exemplo, e nós tendemos a seguir muito mais os exemplos do que as palavras.

 

Parece que vivemos um tempo sem precedentes na luta contra o preconceito. Hoje, cenas de injúria racial são filmadas e os responsáveis são criminalizados em alguns casos, com muita luta da sociedade, enquanto, no passado, o racismo não era sequer percebido pelas pessoas, porque as piadas de mau gosto pareciam apenas piadas inocentes, embora não o fossem.

 

Vivemos numa época em que ainda se ofendem minorias, avilta-se a dignidade de alguns grupos, e ainda se praticam violências com base no preconceito, sob as vistas grossas do poder policial ou sob a chancela do poder público, mas essa realidade não está mais sendo tolerada pelo homem do século XXI. E quanto mais os aviltados pelo preconceito se levantam, mais barulho fazem os preconceituosos e racistas, que, antes, se sentiam confortáveis com a discriminação, e agora não podem mais tripudiar o próximo e continuarem saindo ilesos.

 

Esse levante e aparente tolerância zero contra o preconceito, louváveis e necessários, tem gerado um movimento cultural que nem sempre atinge o fim visado. O que se percebe, em grande parte das ocasiões, é uma mudança na linguagem, que se torna mais polida, porém não é capaz de mudar o preconceito que está no coração das pessoas. Se é certo que as palavras mais adequadas podem conduzir as pessoas a ideias mais precisas, mais corretas, mesmo assim parece que o preconceito resiste.

 

Podemos usar como exemplo os termos afro-americanos ou afrodescendentes em substituição a termos pejorativos para designar esse grupo, como negros ou pretos. De fato, a substituição das palavras é adequada, porque ninguém deveria ser definido pela sua cor de pele. Por outro lado, palavras diferentes usadas pela boca de pessoas preconceituosas não mudarão o seu preconceito, assim como não farão com que esses grupos que sofrem o preconceito deixem de se sentir, de algum modo, humilhados, por aquela parcela da sociedade preconceituosa e que teima em se sentir melhor do que os outros. Ou seja, mudam-se os nomes, os termos, e o preconceito acompanha os novos termos. Os novos termos se desgastam e é preciso criar novos termos.

 

É muito comum, por exemplo, pessoas que solicitam benefício para invalidez perante a Previdência Pública sentirem-se ofendidas porque elas não são, de fato, “inválidas” no sentido de que não tenham valor. Então o termo é ofensivo. Ocorre que esse é ainda o termo que vige na legislação brasileira. Mas não deixa de ser um estigma ser aposentado por “invalidez” (para o trabalho), porque esse termo afeta a dignidade humana.

 

Porém, altere-se o termo para um outro mais adequado e as pessoas que se sentem inferiorizadas por terem essa condição continuarão a se sentirem inferiorizadas enquanto a sociedade tratá-las como inferiores, não lhes dando oportunidades. É muito triste, por exemplo, ter um filho amado que tenha alguma condição incapacitante e seja taxado de inválido pela sociedade.

 

Há algum tempo, as empregadas domésticas sentiam-se estigmatizadas por serem chamadas de “empregadas”, porque o termo remetia à ideia de uma pessoa que tinha um emprego visto pela sociedade como de menor relevância ou menos digno. Ocorre que o termo empregada ou empregado é adequado, e todo emprego é digno. Podemos ser empregados de uma empresa, assim como podemos ser empregados de um patrão só ou uma patroa.

 

Então, muda-se o termo para “doméstica”, “ajudante” ou “secretária do lar”, para não diminuir a dignidade da pessoa. Mas não é o termo que diminui ninguém; é o preconceito que existe na sociedade e na própria pessoa que se sente estigmatizada. Mudam-se os nomes e o preconceito continua, porque o orgulho daqueles que se sentem superiores permanece, ou, muitas vezes, permanece o orgulho ferido de quem se sente inferiorizado com sua condição social.

 

Se é difícil mudar o preconceito do preconceituoso, não menos árdua é curar as feridas de quem foi ou é vítima do preconceito. Quando uma pessoa foi ferida ou aviltada na sua dignidade, oprimida pelo preconceito durante toda a sua vida, é comum tornar-se um militante da causa antirracista, porque ela sentiu e sente na pele a violência moral e psicológica que é ser vítima de tratamento diferenciado, opressivo, discriminatório gerado pelo preconceito, que se manifesta quase sempre de forma velada, disfarçada.

 

A causa antirracista e antipreconceito é sempre muito digna e muito justa, mas às vezes a militância esbarra em algumas dificuldades. Comumente, a pessoa ferida pelo preconceito pode ter uma visão distorcida dos fatos e dos acontecimentos que a ferem. Uma pessoa com um nervo exposto tende a sentir dor mesmo quando esbarre em algum objeto inerte e inofensivo. Alguém que tenha sofrido preconceito durante toda a sua vida ou, pelo menos, na fase de infância e adolescência, tende a enxergar no tratamento ríspido ou menos respeitoso do outro sempre um ato de preconceito, ainda quando não o seja de fato.

 

Neste caso, muitas vezes, a pessoa vítima da situação desrespeitosa coloca-se como vítima do preconceito racial mesmo quando não seja o caso, situação que acaba por ocasionar um desserviço à causa que defende.

 

A militância antirracista, para fazer frente à parcela da população que é racista, preconceituosa e discriminatória, acaba por reforçar, justamente, aquilo que pretende combater, que é o pré-julgamento de qualquer pessoa em razão de sua cor da pele. Para corrigir as injustiças históricas contra a população de afro-americanos, é comum, por parte de alguns, por exemplo, a reinvindicação de ações políticas que, de algum modo, favoreçam pessoas com determinada cor de pele em detrimento de outras.

 

Essa questão é bastante complexa e delicada. Se aqueles que são vítimas do preconceito não ocupam um lugar de fala na sociedade e não reforçam o orgulho que têm por serem como são, por pertencerem ao grupo a que pertencem, e se não denunciam a violência, se não a expõem e não a retiram da condição de violência velada para colocá-la à luz do dia, quem o fará?

 

Por outro lado, a militância pode incorrer no erro, especialmente quando se trata de uma pessoa emocionalmente ferida, de tratar com preconceito pessoas que, por questões de nascimento, tenham o aspecto exterior aparentemente privilegiado. Se é certo que pessoas de cor de pele clara e olhos claros não são vítimas do preconceito de raça, avaliá-las como pessoas privilegiadas é uma forma de julgamento pré-concebido – ou seja, uma forma de preconceito – pois desconhecemos as dificuldades e sofrimentos pelos quais essa pessoa passou durante toda a sua vida.

 

Desse modo, voltamos à questão inicial, de que ninguém deve ser avaliado pela sua embalagem, mas pelo seu conteúdo. Ninguém pode ser julgado a priori, nem por ter pele escura, nem por ter pele clara, nem por seu gênero, sua orientação sexual, sua religião, sua condição ou aparência física, seu sotaque, sua classe social, seu vocabulário, nem por seu discurso.

 

Ninguém pode ser considerado uma pessoa boa, nem ruim, apenas por ser antirracista, feminista, defensor das pessoas LGBTQIA+, defensor dos animais, por ser vegano, por ter esta ou aquela preferência política, ou por ser militante da causa antipreconceito. A causa que a pessoa defende, por si só, não indica que ela seja uma pessoa boa nem má; são suas ações, sua conduta perante a sociedade que a definirão. E se suas ações não são boas ou não são coerentes, a causa que defende fica prejudicada.

 

O mesmo já não se pode dizer com relação a pessoas que defendem ideias ou posturas que causem sofrimento ou firam a dignidade de outrem. Alguém que nutre ideias preconceituosas que causam opressão a outras pessoas não pode ser boa, por mais que, seja uma pessoa bem posicionada socialmente, que seja, perante a sociedade, aparentemente gentil, educada ou até religiosa.

 

Pessoas com ideias machistas, racistas, homofóbicas podem até ter um verniz de educação, mas suas ideias e posturas, por mais inofensivas que pareçam, são o combustível que gera a opressão e a violência social para com alguns grupos, a injustiça, a indiferença dos governantes, a exclusão, a humilhação de muitos e, em última instância, promovem o genocídio, o feminicídio, o bullying, destroem vidas em suma, sendo corresponsáveis pelas violências que outros cometem com base nas ideias que eles alimentam.

 

O preconceituoso, muitas vezes, justifica seus crimes ou os crimes que outros praticaram pelo fato de que a vítima, na verdade, teria o que merece. Para o homofóbico, por exemplo, pessoas da comunidade LGBTQIA+ é que estariam cometendo delitos, apenas por serem o que são, apenas por existirem. Então, os crimes praticados contra essa população, sejam de injúria, agressão ou homicídio, estariam tacitamente perdoados, porque o homofóbico crê que tais pessoas não deveriam participar da sociedade ou que o fato de serem como são se dá por uma escolha pessoal, e que essa escolha pessoal seria um crime aos seus olhos, o que não é o caso. É somente o preconceito que o mantém na ignorância voluntária, a ignorância da real natureza do outro, do diferente de si mesmo, que ele não compreende e não quer compreender.

 

Em países democráticos, vivemos a liberdade de expressão. Mas essa liberdade de expressão vai até o limite em que posso ferir a dignidade ou a integridade de outro ser humano. Uma pessoa tem o direito de acreditar no que quiser, mas não tem o direito de expressar-se no sentido de ferir o direito de outrem, de ameaçar sua dignidade ou sua vida com discursos de ódio, ainda que esses discursos estejam calcados em crenças religiosas.

 

Enquanto houver pessoas que alimentam preconceitos que atentem contra a dignidade de outrem, haverá holocaustos, chacinas praticadas por policiais, ataques físicos ou morais a pessoas que não pensem como eu ou que sejam diferentes de mim; haverá a tirania da maioria sobre a minoria, a tirania dos mais fortes sobre os mais fracos, a opressão social, a injustiça. É uma violência invisível, naturalizada, normalizada, aparentemente inofensiva, mas que é a causa dos maiores desastres da humanidade.

 


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